quinta-feira, 25 de março de 2010

"Uma bênção de Deus: uma nova geografia urbana"

"Chego a Copenhaga e renovo este sentimento - uma bênção de Deus - da euforia de um primeiro destino, uma nova geografia urbana, outras gentes. Damos de barato que a Europa é tudo a mesma coisa, mas isso é só um cliché com que nos tranquilizamos: a História sempre nos ensinou o contrário.

"A Dinamarca possui o PIB per capita mais elevado da União Europeia, o que significa sobretudo boa educação, competências, iniciativa, um sistema social abrangente e muita qualidade de vida. Um conceito vago para nós, mas que aqui tem muito a ver com a ideia e a prática de que as cidades são feitas para as pessoas e não o contrário. O primeiro sinal vem da qualidade do ar, do reduzido número de carros que circulam nas zonas centrais e do constante pedalar das bicicletas, tantas que fazem parte integrante da paisagem, adaptadas para transportar bebés e crianças, conduzidas por homens e mulheres de todas as idades e condições sociais. Pensei nas ciclovias feitas à pressa, em Lisboa, nas vésperas das últimas autárquicas, uma reivindicação recorrente que parecia corresponder a um desejo generalizado dos lisboetas e a uma necessidade em termos de mobilidade urbana. Afinal, as ciclovias estão às moscas porque, como sabemos, não são elas que fazem os ciclistas mas sim o contrário. E aqui está uma importante diferença cultural…

"Uma outra diferença tem a ver com o conceito de restauro dos monumentos históricos. Ao visitar o palácio de Frederik VIII, em Amalienborg, que está a ser restaurado, verifiquei, com emoção, que embora os trabalhos tenham como referência o plano de Koch, datado de 1828, os responsáveis ousaram juntar elementos novos ao convidar dez eminentes artistas contemporâneos para darem o seu contributo através de pinturas murais abstractas, que vão marcando cada uma das 11 salas, num convívio de alto risco mas de grande sucesso, com os elementos decorativos de época. Imagine-se o que aconteceria, em Portugal, se idêntica iniciativa fosse tomada… Um crime, um atentado! Para nós, o património pode cair aos pedaços desde que se mantenha imutável.

"A minha curiosidade pelas metamorfoses urbanas levou-me a Christianshavn, um bairro construído na primeira metade do século XVII e que se desenvolveu com a construção dos primeiros estaleiros e armazéns das grandes empresas navais. Com o tempo, tornou-se um território deprimido e sem vocação aparente até à criação de um programa específico e sustentado de requalificação urbana. A receita é sempre a mesma e tem dado resultado em muitas cidades europeias: armazéns transformados em restaurantes e cafés, apartamentos para jovens e espaços para actividades económicas ligadas às artes, ao design e à moda e um comércio a condizer. Certamente que o programa custou dinheiro e não se fez de um dia para o outro, mas o resultado via-se naquele fim-de-manhã de sábado, nas fachadas das casas, nas ruas e na população boémia que tomava o seu brunch.

"Nestas latitudes, os dias alongam-se mais depressa e é com uma noite clara que percorremos uma extensa zona pedonal, pontuada por pequenas praças, pátios, torres e fachadas tão juntas que parecem um cenário de cartão: ora de pedra, ora de tijolo, ora pintadas da cor dos sorvetes. Mas é no Nyhavn que estabeleço o meu ponto-âncora: grande canal e novo porto, está ladeado de casas extraordinárias habitadas por gente comum, casas centenares que se foram adaptando às necessidades das pessoas sem perder a sua traça primitiva, os pisos térreos utilizados por restaurantes e bares, filas de esplanadas com mantas macias e peles de ovelha sobre as cadeiras.

"No mercado de velharias, um homem habituado a conviver com peças belíssimas decide que eu tenho ar de coleccionadora: estende-me, como num ritual, uma magnífica jarra de Lalique. Um sonho antigo que trago envolto em folhas de um jornal velho dinamarquês. (...)"

por MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO,
no "DN", 25.3.2010

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