terça-feira, 12 de janeiro de 2010

"Tirem-me daqui"

"Ontem, o Parlamento tornou-se um ecossistema de todas as bizarrias da vida política portuguesa"

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"Ele há dias em que de facto apetece dizer "tirem-me daqui". Quando o "daqui" é o Parlamento, um lugar a que pertenço, onde sou parte com gosto e interesse, um lugar que, contrariamente à opinião corrente, prezo exactamente por ser uma emanação do que de mais fundo existe na vida política democrática: a diferença de opiniões, os "partidos" em que nos dividimos, a representação imperfeita que seja, da turbulência que é a vida política em liberdade. É exactamente a imperfeição do Parlamento, que emana do seu carácter democrático, que sempre me interessou, porque só brilharia de perfeições se fosse totalitário ou apenas demagógico. A Assembleia Nacional salazarista era isso mesmo, tudo tão educado, tudo tão respeitador, tudo tão "vossas excelências" e "excelentíssimo senhor Presidente do Conselho", tudo sábios e doutores e comendadores e digníssimos representantes da nação, e nada de democracia. De todas as instituições políticas, mais nas suas fraquezas que nas suas forças, o Parlamento é o que é o Portugal político, não o Portugal dos políticos, mas o Portugal político que existe, tão próximo do comum dos cidadãos que estes o maltratam com a proximidade de uma coisa sua, de uma zanga de vizinhos, de uma querela conjugal, de uma valente discussão de café. Este aspecto igualitário que faz com o que o homem comum olhe de cima para o Parlamento torna muito árdua a função parlamentar, mas é, no fundo, normal. Há lá virtudes, mas o homem comum prefere vê-lo como o retrato dos seus vícios, e nas suas críticas demagógicas ao Parlamento presta-lhe a homenagem de o sentir mais seu do que alguma vez o admitirá.


"Mas há dias em que o Parlamento falha completamente, quando se torna uma pequena côterie de iluminados que querem contra tudo e contra todos, com uma superficialidade gritante, aceitando uma retórica tão inflamada como vazia, decidindo quase a brincar coisas cujas consequências não são pensadas a sério, em grande parte por modismo e por subserviência ao politicamente correcto. Ontem, o Parlamento tornou-se um ecossistema de todas as bizarrias da vida política portuguesa, um lugar puramente superstrutural, fora do país, sem laços com qualquer realidade, vivendo de uma ficção entre a festa radical chic e os movimentos da extrema-esquerda tardia, que descobriu com o atraso de trinta anos as "causas fracturantes". Ontem, o Parlamento afastou-se de qualquer fundação democrática real e tornou-se apenas o espelho formal de "causas" ultraminoritárias, próprias de uma cultura alternativa, minoritária mesmo entre os homossexuais e lésbicas, a maioria dos quais ainda estão dentro do "armário", num contexto social e etário muito diferente dos jovens que comemoravam nas escadas da Assembleia o seu dia de glória mediática. Essa maioria invisível, essa sim é que vive mal e infeliz, e estes folclores não a ajudam porque contribuem para reforçar a homofobia e não a combatê-la.


"O que mais me assusta é a irresponsabilidade de toda esta "festa". Os jornais e as televisões ardem de falsa indignação quando um deputado chama palhaço a outro ou o manda a qualquer lugar feio, mas não é isso que ajuda a estragar o Parlamento: é o momento em que este, sem sequer parar para pensar, se desvia do país para navegar causas absurdas com as quais gasta as melhores das suas palavras. Quando ouvia interiormente o "tirem-me daqui", foi quando assistia aos discursos grandiloquentes sobre o dia da "decência", o momento de "grande dignidade", a "reparação dos direitos ofendidos", a dádiva da "maior felicidade", com hipérbole sobre hipérbole, desde o primeiro-ministro aos Verdes, do Bloco de Esquerda ao discurso de puro insulto inflamado de um deputado da JS.


"No meio disto tudo, o discurso de Vale de Almeida parecia um exemplo de moderação, apesar do seu tom de oração evangélica aos "irmãos e irmãs", que fazia chorar as pedras da calçada. E mesmo Assis, que é bem melhor do que a sua bancada, colocava entre parêntesis o seu pessimismo antropológico para saudar o "progresso" daquele dia, em que o Sol rasgava as trevas ignaras da Reacção. Parecia o Congresso a aprovar a Declaração da Independência. Só o PCP, embora votando junto com a esquerda, mantinha uma reserva e discrição envergonhada, eles que ainda mantêm o fio da corrente ligado à terra e sabem bem que tudo aquilo é mais folclore do que qualquer emancipação de um direito. E era tudo, no fundo, tão ridículo, que eu me perguntava: será que "eles" não dão por ela? Se calhar não.


"As principais vítimas de tudo isto serão aqueles que amam ou desejam alguém do mesmo sexo, homossexuais e lébicas, mais os primeiros do que as segundas, que sitiados por uma sociedade que efactivamente os hostiliza e maltrata, serão vítimas de ver o seu amor ou o seu desejo ainda mais marginalizado pela exibição mais ou menos folclórica e "fracturante" de meia dúzia de intelectuais, pequenos e médios criadores e artistas, gente do mundo da comunicação social, das indústrias culturais, da moda, urbana, jovem, bem arranjada e chique, que em conjunto com alguns políticos, deram origem a uma pseudocausa, de um pseudodireito, o do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Partido Socialista frágil nas suas convicções e sem uma ideia consistente para o país, que cada vez menos conhece, abriu a brecha por onde o Bloco de Esquerda entrou. E não o fez só agora, já com a legislação sobre o divórcio se andam a meter nas andanças da engenharia social "fracturante", gerando uma sociedade mais fragilizada e menos justa para os fracos, como as mulheres divorciadas por carta e os homossexuais que não pertencem à beautiful people.


"A ilusão de que o acesso ao casamento quebra uma barreira simbólica que ajuda a terminar com a homofobia efectivamente existente, o argumento mais hábil de Vale de Almeida, repousa numa ambiguidade e numa hipocrisia. Porque Vale de Almeida sabe perfeitamente que ele e muitos outros a última coisa que pretendem é casar-se, ou sequer imaginam no casamento qualquer virtude especial. Eles sabem bem que o casamento é algo dos "outros", não por causa da lei que os exclui, mas porque o que vem virtualmente no pacote do casamento, a instituição familiar convencional, os "deveres conjugais", não correspondem ao mesmo mundo cultural e emocional do seu entendimento da "causa" dos homossexuais e lésbicas. Para eles o que conta é a "causa", não o mérito da instituição a cujas portas pretendem aceder e por isso a questão é outra, bem longe da luta por um direito, é um ataque a uma determinada forma de viver em sociedade, que abominam e desprezam e tem pouco a ver com a sua cultura e a sua mundovisão. Sabem que ao romper na lei a relação do casamento com a família nuclear, que implica possibilidade real da procriação, erodem para outros um valor que não desejam.


"É por isso que se trata de uma "luta", não por direitos, mas contra uma determinada forma de sociedade. E é também por isso que por todo o debate mostrou uma enorme intolerância num só sentido. "Fanáticos", "intolerantes", "retrógrados", "reaccionários", "aberrantes", foram palavras comuns, ecoando o que era o tom de muita comunicação social que tomou a causa como sua. "Tacanhos" eram todos os que se opunham ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Não é "luta de classes", mas é kulturkampf.


"O que irá acontecer nos próximos dias é previsível. Os primeiros casamentos de pessoas do mesmo sexo serão eventos "mediáticos". Vão lá estar todas as televisões. Haverá muita festa e depois, pouco a pouco, haverá cada vez menos casamentos e cada vez menos novidade. Apenas meia dúzia de pessoas se casará, o que mostrará como era vazia a força do direito ofendido. Mas será o folclore que "passará", uma espécie de travestismo perverso e o seu efeito será aumentar a intolerância homofóbica."

José Pacheco Pereira
in Público, 9.1.2010

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