segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

"O fim do princípio"

"A Assembleia da República aprovou a lei do casamento no mesmo sexo. Isso arrumou a questão? Claro que não. O confronto ainda vai ser longo e incerto. Aliás, é bastante provável que este tema venha a revelar-se o momento de inversão deste grande ataque contra a família que começou há décadas e tem tido muitas batalhas, da pornografia ao aborto. Fazendo o paralelo com o anterior combate cultural, esta mudança do conceito de casamento pode ser a "Primavera de Praga" dos movimentos antifamília.

"A razão disto não vem da gravidade da questão, que é menor e abstrusa, nem resulta dos disparates, arrogâncias e atropelos democráticos que, sendo evidentes, não passam de pormenores. O motivo que poderá fazer desta escaramuça um ponto axial do embate está, não nos detalhes mas na sua lógica mais profunda, na essência da questão. Em particular em dois aspectos.

"Sabemos que uma campanha mediática bem orquestrada consegue convencer o público de qualquer coisa durante algum tempo. Esta foi especialmente maciça e esmagadora, para nos impor como normal e razoável aquilo que quase nenhum outro país do mundo fez, como urgente e indispensável algo de que nunca ninguém se lembrou em milénios de civilização. Mas isso implicou uma supina distorção da verdade para nos convencer de que uma relação homossexual é equivalente ao casamento. A ditadura intelectual não se aguenta muito tempo e a realidade acaba por se impor. Basta comparar as paradas do orgulho gay com as noivas de Santo António para entender a diferença.

"Aliás, a distinção decisiva, não só em termos pessoais e morais mas políticos, sociais, culturais, civilizacionais, e até fiscais, é entre a família perene e fecunda que se propaga nas gerações, baseada num compromisso para a vida, no amor como na dor, e todas as outras alternativas, da promiscuidade às uniões de facto, passando pela depravação e precariedade conjugal que o Estado tem vindo a promover em várias leis. Todos os governantes ao longo de séculos sempre compreenderam que o equilíbrio nacional depende crucialmente de famílias sadias, coisa que as ciências sociais modernas apenas confirmam. É preciso uma enorme dose de embriaguez ideológica e oportunismo tacanho para ignorar este elemento. Este não é um confronto entre duas linhas de futuro, pela simples razão de que a segunda alternativa não tem futuro.

"Isto leva-nos ao segundo elemento da questão. É que aquilo que os discursos e argumentos desta discussão mais desprezaram é precisamente aquilo de que o País mais necessita: procriação. A brutal queda da natalidade, que coloca Portugal entre as maiores catástrofes demográficas mundiais, é o que está por detrás de grande parte dos nossos problemas socioeconómicos, da segurança social ao orçamento, passando pela educação, construção e desenvolvimento.

"Portugal é o país da Europa ocidental com menor taxa de fertilidade. Nos últimos dados disponíveis, para 2007, o nosso valor de 1,33 filhos por mulher é dos mais baixos dos 27, apenas ultrapassado pela Hungria, Polónia, Roménia e Eslováquia, zonas de emigração. Pelo contrário, se por cá descontarmos os filhos dos imigrantes ainda caímos mais. Somos um povo em vias de extinção.

"Temas como fertilidade e família são muito vastos e complexos, implicando múltiplos aspectos da realidade pessoal e cultural. Mas a maior parte dos nossos parceiros próximos, que registaram descidas importantes de fertilidade nos anos 1970 e 80, perceberam o problema e inverteram a situação na década seguinte. Hoje encontram-se numa trajectória claramente ascendente. Os nossos responsáveis, não só não repararam mas estão do lado oposto. Por isso continuamos alegremente a descer e em breve ultrapassaremos os mínimos mundiais. O futuro terá dificuldade em compreender tal imbecilidade.

"Passaram mais de 20 anos da Primavera de Praga à queda do Muro de Berlim. Como disse Churchill depois da batalha de El Alamein: "Isto não é o fim; nem sequer o princípio do fim; é talvez o fim do princípio" (Discurso de 10 de Novembro de 1942)."

por JOÃO CÉSAR DAS NEVES,
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

7 comentários:

Marta Ferreira disse...

João César das Neves... esse sábio que acha que "A subida do salário mínimo constitui o maior atentado das últimas décadas às classes desfavorecidas.” Gostava de ver o senhor a viver com um desses chorudos salários de 475€... :)

Nuno disse...

O problema do salário mínimo é complexo - tanto mais que o Governo não o aumentou mais.

Mas, mais grave do que os salários é a baixa de natalidade que temos em Portugal. E aí, os sábios do Governo e do PS oferecem um cheque para daqui a 18 anos... Magnífico!

Marta Ferreira disse...

Eheh. Desculpa, mas está a escapar-me o "baby boom" a que assitimos quando o CDS-PP estava no governo!

Nuno, os sábios do PS não oferecem só o cheque. Existe o subsídio pré-natal, os cheques dentista, o aumento das licenças de parentalidade, a majoração dos abonos de família, o alargamento da rede de creches, as consultas permanentes e gratuitas (enfermagem, médico e na maternidade a partir da 32ª semana), as análises e as ecografias também gratuítas, o kit oferta para recém-nascidos, os cursos de 3 meses de preparação para o parto igualmente gratuitos, o aumento na qualidade e humanização das maternidades...

Nuno disse...

Quando o CDS estava no Governo foi aumentada a licença de parentalidade (sem custos para o Estado). Não se aprovou o aborto nem se facilitou o divórcio.

Quanto ao PS: nem tudo é mau! Mas devemos lembrar que há abonos de família ridículos, que muitas das consultas já existiam e que assistimos a um notável aumento de nascimentos em ambulâncias...

O PS governou os últimos quatro anos com maioria absoluta e a natalidade melhorou?

Marta Ferreira disse...

Nuno, foi alargado o tempo...é isso que queres dizer. Porque aquilo foi a verdadeira política do "dar com uma mão e tirar com a outra". Ora bem, se anteriormente era de 120 dias a 100% e o ministro da altura passou para 150 a 80%, bem podia alargar para 180 a 66,7% ou 210 a 57,1%... e por aí fora.. sem custos para o Estado mas que acaba por gerar é uma desigualdade no acesso ao direito. Os menos favorecidos continuavam a gozar uma licença de 120 dias a 100%, porque as contas têm que ser pagas todos os meses... :)

E tenho pena que continues a achar que a despenalização da IVG e a nova lei do divórcio tenham influenciado a taxa de natalidade. O aborto sempre existiu. Quem queria abortar sabia onde o poderia fazer, sem qualquer tipo de condições ou aconselhamento profissional.
E quanto ao divórcio, continuo a achar que só devemos permanecer casados com alguém (e ter mais filhos) se houver aquele sentimento nobre a que chamamos amor... Mas são opiniões e cada um sabe de si. Eu cá não retiro prazer de viver em sacrifício, mas...

Quanto aos incentivos à natalidade, honestamente também dúvido da eficácia desses "prémios" que alguns países dão aquando do nascimento. A mim não me faria ter mais filhos... Já se me garantirem qualidade e facilidade no acesso aos serviços públicos de saúde, educação, protecção social...

Nuno disse...

Os esforços devem ser suportados por todos, daí a medida de Bagão Félix ter sido bem aceite.

"O aborto sempre existiu"... Lá estamos nós a marcar passo! O facto do aborto sempre ter existido não quer dizer que não seja combatido. Facilitá-lo, legalizá-lo e financiá-lo é que é completamente errado.

A pena de morte também continua a existir em muitos países. E a prisão perpétua. E por aí fora... Mas não são fatalidades. Nós podemos mudar... e devemos fazê-lo para melhor.

Quanto ao sacrifício... Há muito a dizer sobre isso. A verdade é que há causas pelas quais vale a pena sofrer e ir à luta. E a família é uma delas. Não nos movemos numa sociedade super comodista (em que as pessoas nem se dão ao "trabalho" de ir votar)? Será que hoje não se vira as costas aos sacrifícios com muita facilidade?...

Por fim, quando as pessoas ganham mal e pagam impostos pesados (como em Portugal), ter mais um filho é caro. Como cada pessoa traz riqueza a uma sociedade, ganha sentido que, uma vez mais, os esforços sejam divididos, e o Estado dê uma ajuda nas despesas. E se olharmos para a França e para a Suécia encontramos resultados muito positivos na recuperação da natalidade e no futuro destes países.

Nuno disse...

"Os Erros"

"A confusão a fraude os erros cometidos
A transparência perdida — o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos
Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso não esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?"

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"