quarta-feira, 13 de abril de 2011

"Mudar de vida"

"O pedido de ajuda de Portugal à União Europeia acabou por acontecer, como era de esperar. Também era de esperar o frenesim de comentários e debates sobre o tema, a atribuição de responsabilidades, e as acusações mútuas. O apelo de 47 personalidades a um compromisso nacional, divulgado no passado sábado, foi uma excepção inspiradora no actual clima nacional.

"Não creio que haja muito mais a dizer sobre tudo isto. A trajectória que nos conduziu à humilhação presente não começou com a queda do Governo, nem com esta ou aquela peripécia. Começou na última "década perdida" - como justamente tem sido chamada -, em que Portugal não teve praticamente crescimento económico e voltou a afastar-se da média europeia.

"Não haverá qualquer solução duradoura para a nossa aflição orçamental, se não forem enfrentadas as causas da estagnação económica da última década. Essas causas são relativamente simples e têm sido mencionadas pela generalidade da imprensa de qualidade internacional, com particular destaque para The Economist e The Wall Street Journal. No entanto, elas não parecem dominar a nossa atenção.

"Esta dissonância cognitiva entre o que é dito lá fora e o que é dito cá dentro é, ela mesma, expressão das origens profundas da nossa "década perdida". Essas origens radicam numa cultura política dominante extremamente avessa ao empreendimento, ao risco, à inovação, ao mérito, em suma, à criação de riqueza.

"Portugal tem o mercado de trabalho mais rígido do mundo desenvolvido, como vem repetindo The Economist, e não tem um mercado de arrendamento. Em contrapartida, tem uma burocracia pesada que dificulta qualquer movimento, um Estado intrometido que favorece uns e desfavorece outros, uma carga fiscal ridiculamente elevada, um sector empresarial público totalmente desnecessário e perdulário. Numa palavra, somos uma democracia política europeia e ocidental com hábitos económicos orientais.

"Mas isto não pode ser dito entre nós. Imediatamente surge um coro de acusações contra o chamado "liberalismo selvagem". E o que se entende por "liberalismo selvagem"? Ninguém sabe ao certo, mas parece residir nas coisas mais triviais. Na asserção de que quem cria riqueza é a empresa privada, não as empresas públicas deficitárias. Na observação de que só a concorrência leva as empresas a terem de ter em conta o interesse público, isto é, o interesse dos seus clientes - e que, por isso, o Estado não deve favorecer empresas ou sectores em detrimento de outros, porque isso desvirtua a concorrência.

"Também é liberalismo selvagem observar que o meio mais efectivo de melhorar as condições de vida de todos reside uma vez mais na concorrência. É esta que introduz uma pressão constante para a baixa dos custos de produção e melhoria da qualidade de bens e serviços. É esta pressão para a baixa dos custos que torna acessíveis ao maior número de pessoas bens e produtos que outrora só eram acessíveis a poucos. Este foi o motor do crescimento das classes médias no Ocidente nos últimos dois séculos, e este tem sido o motor que nas últimas três décadas tem retirado da pobreza milhões de pessoas na Índia e na China, bem como, em regra, nos países pobres que abriram os seus mercados à troca global.

"Porque negámos estas observações elementares, tivemos na última década um crescimento irrelevante. Vamos agora pagar essa audácia, já começámos a pagá-la, com programas de austeridade que a década perdida tornou incontornáveis. Mas a austeridade não resolverá os problemas do país, se não for acompanhada de reformas estruturais que permitam a criação de riqueza.

"Numa palavra, precisamos, como se costuma dizer, de mudar de vida. O choque orçamental poderia ser o ponto de viragem para essa mudança. Mas isso teria de ser dito com frontalidade aos portugueses."

João Carlos Espada
Director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa;
titular da cátedra European Parliament/Bronislaw Geremek in European Civilization no
Colégio da Europa, Campus de Natolin, Varsóvia
Público, 11.IV.2011

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