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Muitas das notícias sobre a recente sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a respeito da legislação irlandesa sobre o aborto dão a entender que esse tribunal condenou a Irlanda por causa dessa legislação e da proibição, que dela decorre, do aborto em todas as circunstâncias excepto em caso de perigo para a vida da mulher. Daí poderia concluir-se que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos consagra o direito ao aborto e impõe uma alteração dessa legislação, tão restritiva e contrária à da quase totalidade dos países membros do Conselho da Europa.
Mas não foi esse, claramente, o sentido da decisão do Tribunal de Estrasburgo, pelo que um esclarecimento se impõe.
A pretensão das recorrentes neste caso (A. B. e C. contra Irlanda) era essa, na verdade: que o tribunal declarasse a proibição do aborto contrária ao artigo 8.º dessa convenção, que consagra o direito ao respeito pela vida privada, protegendo a autonomia individual face à ingerência dos poderes públicos. O aborto livre seria um corolário do direito de privacy, na linha da jurisprudência constitucional norte-americana a partir do caso Roe v. Wade, que deu origem à completa liberalização do aborto nos Estados Unidos. Por isso, já desde há muito que os partidários dessa liberalização colocavam grandes esperanças no desfecho deste processo, onde intervinham, como "partes terceiras" (amicus cu- riae), conhecidas organizações pró-escolha.Ora, o tribunal veio negar tal pretensão das recorrentes, afirmando, inequivocamente, que do referido artigo 8.º não decorre qualquer direito ao aborto livre. E é assim porque a questão do aborto não diz respeito apenas à mulher e à sua liberdade, como se mais nenhum direito ou interesse de outrem nessa questão devesse ser considerado. Pelo contrário, a liberdade da mulher está, neste âmbito, de acordo com a sentença, estreitamente ligada à vida do feto, devendo a tutela dessa liberdade ser sopesada com a da tutela dessa vida. Neste quadro, a legislação irlandesa de proibição generalizada do aborto cabe dentro da margem de apreciação das legislações nacionais relativa à conjugação entre esses vários direitos em jogo e corresponde à particular sensibilidade moral e ética das questões envolvidas e aos interesses públicos em causa. O facto de a esmagadora maioria dos estados membros do Conselho da Europa ter legalizado o aborto em termos acentuadamente permissivos não é obstáculo a essa interpretação, nem impõe uma interpretação evolutiva ou actualista desse artigo 8.º.
Por esse motivo, foi negada a pretensão de duas das recorrentes, que se queixavam por lhes ter sido negada a possibilidade de abortar em situações que não configuravam algum risco de vida, embora pudessem caber no âmbito das chamadas "razões sociais". Em relação à recorrente que pretendia abortar por entender que a gravidez impediria o tratamento do cancro de que padecia, o tribunal condenou a Irlanda, não por causa da proibição do aborto em si, mas porque o quadro legal não permitirá acertar com segurança se em casos como esse o aborto seria, ou não, permitido por estar em risco a vida da mulher (facto negado pelo Governo irlandês).
Só os juízes que formularam votos de vencido (seis, contra onze que votaram favoravelmente a decisão) sustentaram a tese de que o direito à liberdade da mulher prevalece sempre sobre o direito à vida do nascituro, distinguindo os direitos das pessoas que "participam activamente na interacção social" e os de quem não tem ainda essa capacidade.
As organizações pró-vida que pugnam pela legislação restritiva irlandesa e que também se empenharam neste processo intervindo como amicus curiae, congratularam-se com este desfecho, que, contra o que se pretendia, não põe em causa, no essencial, a legislação irlandesa ou qualquer legislação europeia que ilegalize o aborto.
É sabido que muitas mulheres irlandesas se deslocam ao Reino Unido para abortar. Os números mais recentes apontam para cerca de cinco mil por ano. Um número, em todo o caso, proporcionalmente inferior ao das mulheres britânicas que legalmente abortam anualmente (mais de um quarto do número de nascimentos) e também das portuguesas (cerca de um quinto do número de nascimentos). A lei irlandesa continuará, pois, a exercer algum efeito de contenção, salvando algumas vidas. Não será algum tribunal europeu a impedi-la de o fazer.
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Pedro Vaz Patto, Juiz
Público, 28-12-2010
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