segunda-feira, 22 de março de 2010

"Como vi o Congresso do PSD"

"Dito de uma forma simples, o PS em Portugal é o partido do Estado – e o PSD o partido da sociedade civil.
Por isso, os congressos do PSD são tão palpitantes: as pessoas vêem que está ali representado o país real, nas suas forças e fraquezas, misturando ricos e pobres, senhores e servos, gente cautelosa e gente desbocada, intelectuais e iletrados.
Não vi o Congresso todo em directo, mas assisti ao momento-chave.
No fim do seu discurso da tarde, Passos Coelho pediu licença à plateia para dirigir uma última palavra ao companheiro Alberto João Jardim; e depois, virando-se teatralmente para o líder madeirense, disse-lhe que era capaz de lhe perdoar, tal como ele próprio (Jardim) tinha perdoado a Sócrates.
E concluiu apelando para que perdoassem um ao outro os agravos mútuos.

"A forma foi infeliz, a referência a Sócrates foi desastrada e a declaração foi artificial.
Logo que Passos Coelho começou a dirigir-se a ele, reparei que Alberto João Jardim franziu a testa.
Mas nunca pensei que fizesse o que fez a seguir: quando Passos Coelho acabou de falar, Jardim levantou-se da mesa, despediu-se de Ferreira Leite, começou a caminhar pela sala – e, quando todos pensavam que ia sair para apanhar o avião para o Funchal, entrou na fila onde estava Paulo Rangel e sentou-se ostensivamente ao seu lado!
Foi um gesto assassino – e um momento decisivo do Congresso.
Passos Coelho nunca deveria ter tido aquela iniciativa: primeiro, porque soou a falso, depois porque pareceu demasiado interesseira (visando ir buscar votos à Madeira, cuja contribuição é decisiva), finalmente porque constituía um enorme risco fazer um desafio a Jardim em directo.
Passos Coelho só poderia ter feito o que fez se tivesse a certeza absoluta de que o seu pedido de mútuo perdão seria bem aceite.
Não a tendo, arriscou-se ao que veio a acontecer: Jardim virar-lhe ostensivamente as costas, manifestando apoio ao seu principal adversário.

"Paulo Rangel só não terá ganho aqui a liderança do PSD se o partido estiver distraído.
Até porque, para lá disso, Rangel foi o claro vencedor do Congresso.
Ele conseguiu inverter em Mafra a onda favorável a Passos Coelho.
As suas intervenções foram claramente as melhores – não só quanto à substância mas também do ponto de vista emocional.
O seu discurso de sábado à noite chegou a ser arrebatador: curto, estruturado, dito com alma, dirigido ao coração dos militantes e com ideias sintonizadas com a matriz do partido.

"Rangel disse duas coisas: que o PSD tem de reduzir a dívida pública, tirando esse encargo das costas das gerações futuras, e tem de garantir uma maior mobilidade social, promovendo a ascensão das pessoas das camadas inferiores – no sentido da criação de uma classe média mais ampla e mais robusta.
E estes dois objectivos concorrem na mesma direcção: libertar e fortalecer a sociedade civil – que deve ser sempre o grande lema do PSD e a sua principal bandeira.
Os discursos de Passos Coelho e de Aguiar-Branco estiveram vários furos abaixo dos de Rangel.
Aguiar-Branco é um homem sério, ponderado, mas tem um registo morno que não arrasta ninguém atrás de si.
Passos Coelho foi muito auto-justificativo, enredou-se em explicações pessoais, falou pouco para a sociedade, não deu esperança aos militantes, e teve aquela tremenda falha que permitiu a Jardim bater-lhe com a porta na cara.

"Dir-se-á que a política não são só palavras – e que a oratória de Rangel não é tudo.
Mas, se a política não são só palavras, a política também são palavras: para convencer os outros, para lhes dar esperança e para ganhar eleições.
E, neste aspecto, Rangel apresentou-se como o mais bem apetrechado – usando um estilo pouco estereotipado e sendo senhor de um vocabulário mais rico e impactante.
Mostrou ainda ser um político com coração – o que é meio caminho andado.
O encerramento do seu discurso da noite, acenando ao PSD com a possibilidade de finalmente ter ‘uma maioria, um Governo e um Presidente’ – que foi o sonho nunca concretizado de Sá Carneiro –, deu aos militantes uma esperança que há muito andava perdida.

"P.S. 1 – Ainda sobre o Congresso, é de elementar justiça elogiar Santana Lopes pela iniciativa e referir os discursos de Marcelo, Marques Mendes e mesmo Menezes, pelo seu conteúdo político. Quanto à tão falada ‘lei da rolha’, não merece comentário: torna-se óbvio que em período eleitoral um militante não pode andar a dizer mal do seu partido ou do seu líder.

"P.S. 2 – Francisco Assis, o líder parlamentar do PS, que diz estar «tudo esclarecido» no caso Face Oculta e se indigna com o facto de o Parlamento querer investigar melhor o assunto, propôs que o mesmo Parlamento discutisse os estatutos do PSD, por incluírem a dita ‘lei da rolha’. Sucede que igual norma também existe nos estatutos do seu partido! A declaração de Assis constituiu, assim, um bom exemplo da precipitação, oportunismo e incompetência que tomaram conta de boa parte da prática política."

José António Saraiva,
Sol, 19 Mar 2010

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