quinta-feira, 18 de março de 2010

"A caminhada"

"O congresso do PSD marcou o termo da caminhada de Manuela Ferreira Leite e abriu um novo ciclo de liderança política. Por várias razões parece-me mais útil, e até mais interessante, o balanço desta caminhada do que imaginar desfechos que em breve ocorrerão.

"Lembram-se que a sua candidatura foi vista por muitos como improvável, a sua vitória também, tal como a sua resistência e sobrevivência. Ninguém negava que era credível, competente, séria, qualidades que se tornaram cada vez mais raras no exercício da política e indispensáveis num tempo que já prenunciava um escabroso abastardamento da vida pública. Mas, dizia-se, faltavam- -lhe outras coisas que os mais cépticos exprimiam de modo vago: era uma mulher de gabinete sem treino para o combate político sobretudo com um adversário como Sócrates; era ingénua porque incapaz daquele mínimo de dissimulação requerido pela política; era inexperiente no manejo daquele quanto baste de demagogia sempre tão recomendável quando se trata de ganhar votos; era excessivamente firme nas suas convicções e demasiado rigorosa nas suas avaliações; calava-se quando se esperava que falasse e falava quando menos se esperava; era imprevisível e excessivamente ciosa da sua independência. Em suma, era incómoda.

"Manuela Ferreira Leite não trouxe um cabaz de promessas e, nem sequer, boas notícias. Muniu-se para esta caminhada com meia dúzia de ideias e meia dúzia de medidas programáticas. Um contraste perigoso face à abundância dos efeitos de um governo detentor de uma poderosa máquina de propaganda que ampliava junto da opinião pública promessas incontáveis e expectativas desmedidas.

"Também foi óbvio desde o primeiro momento que ela não se iria bater no terreno do adversário nem usaria as suas armas. Não fora para isso que se candidatara nem era isso que a motivava. Veio para fazer o contradiscurso, ou seja, imagine-se, falar verdade. Fê-lo num país em grande medida anestesiado, infantilizado, dependente e nada receptivo a cenários apocalípticos de crises eminentes ou mesmo a demonstrações de razoabilidade, que despojavam de glamour um Portugal que Sócrates prometia ressuscitar com as energias renováveis, o computador Magalhães e as obras públicas de encher o olho que nos iriam tirar do atraso e da periferia.

"Sabemos que não há nada menos compensador politicamente do que ter razão antes de tempo e foi isso, precisamente, o que lhe aconteceu. A crise chegou em força, a dívida externa é medonha, o défice é o que é, o desemprego disparou para níveis então impensáveis, os novos pobres não se fizeram esperar, os TGV tornaram-se uma prioridade ridícula e os pacotes anticrise não foram adequadas nem eficazes.

"A famosa "asfixia democrática", que tanto sururu causou, está agora à vista nas comissões de inquérito, nas audições parlamentares, nos rodapés televisivos, nas bocas dos cidadãos. O bom povo português, anestesiado, infantilizado e dependente vai acordar em breve com um PEC feito por este governo intimado pelas instâncias internacionais que mandam em nós, desfazendo as ilusões vendidas a pataco pelo PS na campanha eleitoral das legislativas.

"Afinal Ferreira Leite tinha razão e por isso era perigosa. Tanto ou tão pouco que sobre ela se abateu uma artilharia pesada, das mais violentas e insidiosas a que assistimos. Engana-se quem pensa que o PSD perdeu as eleições por ela ser como é ou dizer o que disse. Perdeu, sim, porque se defrontou com um candidato que personalizou o Governo, o Estado, o erário público e a máquina administrativa numa usura nunca vista.

"Nesta caminhada, Manuela desbravou grande parte do terreno, como presidente e como deputada, para o partido e para o próximo líder, qualquer que ele seja. Algo que nem a nossa habitual memória curta deixará esquecer."

por MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO,
DN, 18.III.2010

1 comentário:

Rui Moreira disse...

Caro Nuno:

Quase todas as semanas me apetece pôr uma fotografia da "velha senhora" no blogue e perguntar: lembram-se do que ela dizia?

Definitivamente, não entendo estes tempos em que o penteado, o guarda roupa e a lábia valem mais para a escolha de um líder do que a honestidade, a competência e a coragem.

Triste, muito triste, e esta crítica não tem ponta de motivação partidária, como sabes. É fruto da mesma decepção e até de alguma revolta que motivaram um artigo que escrevi há muitos anos no diário do Minho, no qual manifestei desagrado pela tese peregrina de que Soares não podia ser Presidente porque estava velho, xéxé, etc.

É também por isso que, quando ouço dizer que o Trócaste é um gajo muito fino, fico doido... Para onde vamos?

Um abraço,
Rui