Ciclo, reciclo... ou novo ciclo?
Vaticinei há cerca de quinze dias que, com a vitória na Dinamarca da coligação de esquerda liderada pelos socialistas, se poderia estar a esboçar um novo ciclo político na União Europeia, e que a previsível próxima vitória da direita em Espanha poderá marcar o crepúsculo de uma década de indiscutível predomínio ideológico e político.
A primeira volta das "primárias" francesas, no último fim-de-semana, em que os socialistas foram chamados a escolher o seu candidato às presidenciais, veio reforçar esta impressão. Em França tudo parece agora encaminhar-se para uma possível (ainda que muito difícil) vitória da esquerda nas presidenciais francesas de Abril do próximo ano.
Com efeito, vença quem vencer estas "primárias", François Hollande ou Martine Aubry - a 2.ª volta será no próximo domingo -, a decisão final colocará frente a Nicolas Sarkozy alguém que todas as sondagens dão, neste momento, como podendo ganhar as próximas presidenciais francesas. A que se poderá seguir, também a julgar pelas sondagens, a dos socialistas alemães, o que - sobretudo num quadro em que Obama consiga a reeleição - alterará profundamente a situação política que hoje conhecemos.
Os socialistas franceses conseguiram nestas inéditas "primárias" uma mobilização extraordinária: um partido de cerca de 120 mil militantes conseguiu implicar na escolha do seu candidato presidencial dois milhões e meio de franceses, ou seja, cerca de vinte vezes mais franceses do que os militantes que tem.
Isto é impressionante, mas é sobretudo um grande sinal para a esquerda francesa, para a qual se começa a desenhar uma nova oportunidade histórica de grande significado nacional e europeu. Caíram assim por terra os palpites de tantos analistas e comentadores sobre a indiferença dos franceses com umas "primárias" tipicamente americanas, sobre os efeitos do caso Strauss-Kahn, sobre a falta de carisma dos candidatos, etc., numa lenga-lenga que é por demais conhecida.
O facto é que os socialistas franceses conseguiram inovar e motivar politicamente os franceses. Para isso muito contribuíram três factores. Em primeiro lugar, a desastrosa condução política de Nicolas Sarkozy, perdido entre um voluntarismo maníaco e uma conjuntura inesperada. (O slogan central da sua campanha de 2007 tinha sido "trabalhar mais para ganhar mais"!...) Depois, a crise internacional e europeia, cujos efeitos têm ameaçado cada vez mais a França e a sua notação financeira "triplo A". Por fim, a capacidade de abertura, de autocrítica e de formulação de novas propostas, de que os socialistas franceses deram prova nestes anos de oposição.
A liderança de Martine Aubry foi, neste ponto, decisiva. Política muito experiente (n.º 2 no Governo de Lionel Jospin, deputada e presidente da Câmara de Lille), Aubry apostou tudo, desde o primeiro minuto da sua liderança, por um lado na compreensão das razões porque a esquerda tem perdido a batalha das ideias; e, por outro lado, na convicção de que só um trabalho sério no plano das ideias poderia conduzir a uma nova proposta global capaz de mobilizar a França.
Como outros partidos socialistas e sociais-democratas que decidiram cortar com os impasses que se foram acumulando no decorrer da última década, também Martine Aubry adoptou o ponto de vista do futuro, abrindo o partido à discussão com os cidadãos e à dinâmica dos "laboratórios de ideias", onde pessoas das mais diversas proveniências colaboram com o objectivo de tornar mais compreensível o mundo em que vivemos, e sobretudo mais claro o mundo em que queremos viver, procurando assim dar um rumo mais definido e estimulante à acção política.
Nada disto se consegue sem abordar de frente e discutir com abertura a actual desordem do mundo, a crítica do capitalismo, as consequências da globalização, o papel do Estado e a revitalização da democracia, os retrocessos da igualdade e a teia da economia da dívida.
Como se sabe melhor do que se pratica, não é com ideias velhas que se ultrapassam os impasses e as crises. É com a coragem das ideias que, mais do que proclamarem-se novas, consigam provar que efectivamente o são, fazendo-o através do debate, da deliberação e da eficácia.
Não é reciclando ideias gastas que se conseguem abrir novos ciclos - é esta, para já, a principal lição a tirar das primárias da esquerda francesa.
por MANUEL MARIA CARRILHO,
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