quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Casamento IV

4. ALEGAÇÕES FINAIS.

Não é propósito desta intervenção um estudo exaustivo da instituição matrimonial, mas apenas oferecer algumas pistas que possam ser de utilidade para uma legítima defesa do casamento no contexto de uma sua eventual equiparação às uniões entre pessoas do mesmo sexo.

4.1. As propriedades essenciais do matrimónio e os limites objectivos de uma reforma do casamento.
É recorrente, na argumentação dos que pretendem a outorga do estatuto matrimonial às uniões de pessoas do mesmo sexo, a afirmação de que o casamento é uma instituição que, como todas as outras, é susceptível de evolução e, por isso, nada obsta a que, de acordo com o sentir de um sector não desprezível da população, se amplie o seu conceito de forma a nele também incluir as uniões de pessoas do mesmo sexo. Para os defensores desta causa fracturante – que se calhar poderiam ser mais propriamente designados como advogados do diabo …- esta reforma do estatuto do matrimónio civil representaria um passo decisivo no sentido de uma maior justiça social, bem como o quebrar de uma barreira, que releva uma discriminação que entendem injusta e contrária ao princípio da liberdade e da igualdade de todos os cidadãos ante a lei.

Uma tal posição doutrinária obriga, como é óbvio, a um entendimento sobre os limites do casamento, ou seja, quais as fronteiras intransponíveis do conceito em causa. Isto é, se se entende que tudo pode ser assimilado à instituição matrimonial, esta deixa de ter qualquer vigência jurídica, porque a progressiva descaracterização do instituto em questão acarretaria, na prática, a sua extinção. Se, por um absurdo, todos os cidadãos, pelo simples facto de o serem, têm imediato acesso ao casamento, ou qualquer relação humana pode ser considerada juridicamente como matrimonial, então o casamento deixaria de ter qualquer significado, na medida em que o que é tudo também nada é.

No extremo oposto, encontram-se quantos defendem uma noção unívoca de casamento, identificado com o casamento cristão ou o casamento tradicional, e que, em consequência, não admitem quaisquer variantes nem novas modalidades.

Entre estas duas posições extremistas, por excesso ou defeito, cabe uma posição intermédia, que se afigura também de mais equilíbrio e bom senso e que se poderia resumir na seguinte tese: o casamento tem algumas propriedades essenciais que não são reformáveis, mas admite diversos regimes jurídicos e, por isso, diferentes modalidades no que lhe é acidental. Pode-se assim concluir que importa então esclarecer quais são essas propriedades essenciais do matrimónio, para depois poder considerar a hipótese de que a união entre pessoas do mesmo sexo seja tida juridicamente por um verdadeiro casamento.

Não é tarefa fácil a determinação da essência da instituição matrimonial, mas talvez o melhor método para o apuramento das referidas propriedades essenciais seja a realidade social, entendida histórica e universalmente. Ou seja, aquilo que desde sempre e em todos os lugares foi sempre tido por casamento configura, na sua essência, o matrimónio, enquanto as variações históricas ou geográficas seriam reputáveis aos tempos ou às diferenças culturais.

4.2. Breve história do matrimónio.
O âmbito desta intervenção não permite uma viagem pelo tempo e pelas diversas sociedades de modo a poder estudar todas as concretizações históricas da instituição matrimonial. Mas, de uma forma muito sucinta, talvez se possam considerar alguns exemplos retirados da Sagrada Escritura e que, mesmo não sendo exaustivos, são certamente significativos.

Por exemplo, consta que nos tempos dos patriarcas do Antigo Testamento era relativamente usual a união matrimonial de um homem com várias mulheres, muito embora depois se tenha evoluído para um sistema monogâmico. Neste sentido, pode-se então admitir que a poligamia é compatível com a instituição matrimonial e, em consequência, também a poliandria, muito embora não constem exemplos bíblicos de uma só mulher casada simultaneamente com vários homens. Contudo, quer no caso da poligamia, quer no caso da poliandria, muito embora se possa admitir que se trata de um verdadeiro casamento de um homem com várias mulheres, ou de uma esposa com vários maridos, respectivamente, é óbvio que tais modelos ferem o princípio da igual dignidade de homens e mulheres, razão que faria intolerável um tal modelo na nossa sociedade.

Uma segunda constatação histórica, reportada a Moisés e ao seu famoso libelo de repúdio, permite afirmar que o matrimónio dissolúvel foi um verdadeiro casamento na antiguidade, muito embora repugne à nossa moderna sensibilidade que a mulher possa ser arbitrariamente despedida pelo seu esposo e o contrário, em princípio, não seja possível, de acordo com as leis e praxes judaicas. Mas não restam dúvidas de que co-existiu com o verdadeiro casamento a prática do divórcio, consentida até pelo divino Legislador.

Com o começo da nossa era, o estatuto matrimonial recebe uma nova formulação, bem mais exigente, a condizer com o projecto inicial do Criador e da sublimidade da perfeição a que são chamados os filhos de Deus em Cristo Nosso Senhor. Com efeito, o casamento cristão não só foi elevado à condição excelsa de Sacramento da Nova Lei, como foi ainda blindado com a garantia da indissolubilidade, que reforça extraordinariamente o próprio vínculo nupcial. A uma tal exigência corresponde também, como é óbvio, uma especial assistência divina, qual é a graça sacramental com que são fortalecidos os noivos para que logrem levar a bom termo esse seu compromisso recíproco, que o é também com a Igreja e com Deus.

Mais modernamente e no contexto das sociedades secularizadas, a emergência do casamento civil veio oferecer um modelo matrimonial laico, descomprometido de qualquer crença ou religião. Mas também este matrimónio civil se afirma como aquela união de um homem e uma mulher que tende naturalmente para a geração e que se distingue, por isso, de todas as outras relações amorosas que não estão vocacionadas para essa complementaridade sexual que é própria e específica do casamento e que é, por exigência natural, princípio de vida.

Monogâmico ou poligâmico, dissolúvel ou indissolúvel, religioso ou civil, a verdade é que ao longo de toda a história da civilização mundial o casamento é sempre a união de um homem com uma mulher em ordem á constituição de uma família.

4.3. Uma lição do Direito Romano.
Como é sabido, o Império romano contribuiu de forma decisiva para a formação do espírito e da civilização europeia, de que muito justamente o nosso país e quantos fazem também parte da União Europeia se consideram herdeiros. Se a Grécia contribuiu com a riqueza do pensamento filosófico, Roma aportou o instrumento que, por excelência, configura a vida social: o direito. A estas duas poderosas contribuições históricas de particular relevo na constituição da cultura e identidade europeia há ainda que acrescentar o influxo da fé cristã, que fez do novo continente a pátria do humanismo, expressão cívica da caridade evangélica.
A sociedade romana do princípio do primeiro milénio da nossa era não tinha ainda assumido os princípios cristãos que, pelo contrário, furiosamente combatia. A sua vida social era aliás já muito decadente, em termos morais, razão que então, como agora, terá motivado as perseguições dos cristãos, tidos por principais inimigos da sua desregrada vida e dos seus decadentes costumes.

Entre outras expressões dessa acentuada crise moral se conta a prática da homossexualidade, que não só era tolerada pela sociedade civil como também assumida pela religião imperial. Portanto, não obstante o seu carácter anti-natural, a praxe das relações íntimas entre pessoas do mesmo sexo era um comportamento admitido socialmente e que não merecia qualquer pena jurídica, nem nenhuma condenação social ou religiosa. Por assim dizer, estavam criadas todas as condições para que esse comportamento fosse institucionalizado pelo respectivo direito, no entendimento de que este deve traduzir, em termos jurídicos, a realidade social. Contudo, em tempo algum consta que os romanos tenham querido equiparar ao casamento as uniões entre pessoas do mesmo sexo que, por isso, no Direito Romano como em nenhum outro ordenamento jurídico, nunca tiveram estatuto matrimonial.

A constatação de que em nenhum momento tenha sido dado, pelo Direito Romano, o estatuto matrimonial às uniões homossexuais, não obstante a comprovada existência e aceitação social destas, só pode ser explicada na medida em que os juristas romanos, como aliás a própria sociedade de então, entendiam o matrimónio como uma realidade social diferente de uma qualquer união entre pessoas do mesmo sexo. Não obstante a decadência dos costumes, era contudo assente que o matrimónio era uma realidade essencialmente diferente de uma união homossexual, muito embora nenhum preceito religioso ou preconceito social desaprovasse as uniões de pessoas do mesmo sexo.

Não resulta portanto descabido concluir que, também para os romanos, a heterogeneidade de sexos dos cônjuges é essencial ao matrimónio, pelo que não faz sentido admitir um «casamento homossexual», que em caso algum seria uma modalidade possível do matrimónio, mas um não-casamento, na medida em que este, por definição, é sempre estabelecido entre um homem e uma mulher.

Note-se também que, curiosamente, para o Direito Romano era relevante a chamada «affectio maritalis», isto é, o amor que deve existir entre aqueles que se unem pelos laços da união esponsal. O próprio Direito Romano admitia, de acordo com as modernas tendências divorcistas, que a ausência dessa referida afeição matrimonial era razão suficiente para dissolver o vínculo, segundo o entendimento de que não seria um verdadeiro casamento a união que já não estivesse estabelecido sobre a base de um verdadeiro amor entre os cônjuges. Razão de mais para que essa mesma «affectio», quando existente entre pessoas do mesmo sexo, pudesse também legitimar entre elas uma sui generis união matrimonial. Contudo, nem sequer por esta via se chegou nunca ao absurdo de considerar como casamento uma união que, por não ser de um homem com uma mulher, não é matrimonial, nem constitui verdadeiramente uma família.

4.4. O matrimónio natural, património mundial.
O que fica dito é quanto basta para se poder extrair uma conclusão, qual é a de que, desde sempre e em todo o lugar, se entendeu o matrimónio como sendo a união entre um homem e uma mulher. É certo que são verificáveis diferentes modos de estabelecer essa relação matrimonial, que pode ser dissolúvel ou permanente, religiosa ou meramente civil, etc., mas é sempre, em qualquer cultura, uma relação entre duas pessoas de diferente sexo, que se unem com o propósito de constituir uma família. A razão dessa disparidade entre os cônjuges resulta não só da conveniência dessa distinção em termos de conjugalidade, a qual decorre da complementaridade existente entre o modo de ser masculino e o modo de ser feminino, mas também em função da fecundidade, na medida em que só a união sexual do homem e da mulher é susceptível de ser naturalmente fonte de vida.


Com efeito, a razão pela qual a mulher só pode casar com um homem e vice-versa é a que decorre da complementaridade entre os dois sexos, em virtude da qual o ser masculino só se completa pela união com um ser feminino e a mulher, por sua vez, só complementa a sua feminilidade na medida em que se une a um varão. Essa recíproca dependência é ainda mais manifesta quando relacionada com a geração, porque o filho é naturalmente fruto da união sexual do homem e da mulher.

À margem dos diversos modelos históricos de casamento, pode-se assim chegar à essência da realidade matrimonial, a qual se expressa na conjugalidade da união entre um homem e uma mulher: todas as relações que revestem este carácter são susceptíveis de integrar um verdadeiro casamento, do mesmo modo que todas as uniões que não observam esta condição essencial não são, por definição, de carácter matrimonial. Este requisito essencial configura, portanto, o que se poderia designar pelo matrimónio natural, que mais não é do que a essência de todo e qualquer casamento e a condição sine qua non para que se possa atribuir carácter matrimonial a uma determinada relação jurídica. É natural porque é anterior a qualquer especificação cultural ou religiosa, não decorre de nenhum modelo civilizacional determinado, nem expressa nenhuma crença particular. É, pura e simplesmente, o casamento em si mesmo ou de per si, por si próprio e em si mesmo.

O matrimónio natural, assim entendido, não se identifica com o casamento cristão, nem com o casamento pagão, também não reproduz um modelo europeu ou oriental, não é tradicional nem progressista. É o casamento, tout court. E, por isso, constitui também o limite objectivo à reforma da instituição matrimonial: qualquer alteração do estatuto legal que não respeite este limite intransponível necessariamente destrói o próprio matrimónio, em vez de o reformar.

Um casamento que fosse para além desta fronteira, na realidade excederia o conteúdo noético e ontológico da realidade visada e, por isso, já não seria um matrimónio. Porque as coisas não são os seus nomes, muito embora os nomes sirvam, em princípio, para significar a sua essência. As coisas são o que são e os seus nomes só servem quando significam a realidade respectiva, pois qualquer outro uso desses termos configura uma ficção ou uma fraude.

Ainda uma última observação: a negação de uma essência do matrimónio implica necessariamente a destruição social e jurídica do casamento. Se a instituição matrimonial não está minimamente estruturada, nomeadamente pela sua composição de homem e mulher, está vulnerável a qualquer equiparação, por mais absurda e aberrante que possa ser.

Com efeito, se a união matrimonial se define essencialmente pelo amor entre os cônjuges, qualquer que seja o seu sexo, que razão assiste à proibição de uma interdição do casamento entre irmãos, por hipótese, ou até mesmo com ascendentes ou descendentes?! Não é verdade que também os membros de uma mesma família se amam entre si? Se a relação matrimonial já não tem nenhuma conotação conjugal nem reprodutiva, razão da disparidade sexual dos cônjuges, nada obsta que a mesma se estabeleça entre pessoas do mesmo sexo, da mesma família e, também – porque não – com animais, como alguns partidos políticos já reivindicam, muito embora, não ao ponto de requerer que a essas aberrantes relações seja dado carácter matrimonial.

Abrir a instituição matrimonial às relações entre as pessoas do mesmo sexo é abrir a caixa de Pandora. É de crer que à conta de uma tão radical perversão do casamento se sigam não poucas monstruosidades, até porque um mal nunca vem só.

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