A trama fatal
O poder político mudou de mãos e com essa mudança veio uma perspetiva completamente diferente de lidar com os problemas. Antes, por mais negros que fossem os números, havia sempre uma "explicação" a dar a volta aos piores cenários e todo um Governo a agir como uma espécie de comissão sempre em festa, desmultiplicando-se em eventos encenados com o rigor e o fausto próprios de quem não tem de olhar a contas. O povo percebeu que o teatro estava a conduzir o País para o precipício e mudou os protagonistas. Agora, temos justamente o contrário. Na atual maioria, ninguém desperdiça a oportunidade para nos lembrar que vivemos um calvário sem fim à vista. Mais, repetem com uma insistência que, às vezes, sugere laivos de sadismo, que "isto" ainda vai ficar pior, como se o inferno, sob a forma de desemprego, falência ou perda da casa, não fosse já tragédia suficiente na vida de centenas de milhares de portugueses. É óbvio que dizer a verdade é sempre a melhor opção, mas limitar a ação governativa à imposição de um plano de austeridade pode ser tão desastroso quanto infantilizar o exercício da governação. Em última análise, as duas atitudes, aparentemente antagónicas, podem mesmo convergir na medida em que desencadeiam mecanismos idênticos de paralisia social. Quando, no tempo de Sócrates, o poder se empenhava na ilusão de uma prosperidade inesgotável acabava por "matar" qualquer veleidade de mudança por parte dos cidadãos. Porquê mudar se está tudo bem e o futuro é radioso? Da mesma forma, a insistência obsessiva dos atuais governantes na austeridade e no sacrifício ajudam à depressão e ao desalento. Para quê mudar se, faça o que fizer, o futuro é negro?
Este clima negativo e deprimente já está a contaminar o próprio Governo. Perdeu-se o ímpeto inicial à medida que surgiram buracos orçamentais desconhecidos e que foram visíveis os primeiros sinais da tensão provocada pela pressão dos lobbies, agora mais do que nunca empenhados em não perder posições à mesa do orçamento. Com exceção das Finanças e do irrequieto Relvas, pouco se sabe sobre o que andam os ministros a fazer, mas a intriga palaciana já tratou de arranjar um bode expiatório - Álvaro Santos Pereira, o titular da Economia. Mais do que apontar as debilidades de um ministro, o fogo sobre Santos Pereira é revelador do estado de alma de um governo que parece perdido na trama fatal por ele próprio criada. Uma austeridade defendida ad nauseum que adquiriu vida própria, como se fosse um fim em si mesma e não uma simples etapa de um processo que até pode ter um final feliz.
Áurea Sampaio
13 de Out de 2011, http://aeiou.visao.pt/
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