Quem diria, na fase de grupos do Mundial, que a França derrotada sem apelo nem agravo pela Nova Zelândia e por Tonga estaria na final? E, no entanto, ela move-se.
Bastou-lhe um jogo mediano contra a medianíssima Inglaterra, há uma semana, e uma hora de sorte contra Gales no Sábado, et voilá. Maxime Médard, um dos poucos tricolores a fugir à banalidade até agora, resumiu o sentimento de embaraço colectivo (e olhem que não é fácil embaraçá-los, com o futebol que têm...) quando admitiu que todos os deuses do rugby tinham estado por eles. Liberté, egalité, divinité, eis a nova divisa da République. Bem podem esquecer por momentos a laicidade e agradecer ao todos os inquilinos dos Campos Elísios. Como sentenciou o lendário François Pienaar, o capitão dos Springboks que ergueu a taça em 95 nas barbas de Lomu e companhia, esta França é a pior finalista de sempre. Não amira que os neozelandeses tenham visto na sua vitória sobre a Austrália a verdadeira final, ainda por cima ganha por 20-6 sem especial dificuldade, e exibam desde anteontem aquele sorriso "we are the champions" que faz dos kiwis um povo de gajos porreiros - excepto quando estão prestes a vencer um Mundial. Felizmente, só acontece de dez em dez anos. Os deuses podem ser franceses, mas não dormem.
Para Gales, pelo contrário, a lei de Murphy substituiu-se à Providência: tudo o que podia correr mal correu. Os experientíssimos James Hook e Stephen Jones, que jogaram sucessivamente a abertura por lesão do titular Priestland, estão com falta de rodagem e falharam quase todos os pontapés que havia para falhar, incluindo a conversão de mais um brilhante ensaio de Mike Phillips (ao poste) e uma incompreensível hesitação em matar o jogo nos últimos minutos com o drop da praxe.
Halfpenny, revelação da prova a arrière, fez passar por baixo do H uma penalidade de 50 metros semelhante à que tinha convertido contra a Irlanda. Pior ainda, muito pior, o skipper Warburton foi expulso aos 17 minutos por placagem perigosa, obrigando os galeses a jogar uma hora inteira com um a menos - e logo o seu jogador mais influente. Mesmo assim, os frogs nunca arriscaram jogar ao largo, para vergonha do tradicional french flair, e limitaram-se a aproveitar as penalidades concedidas. Resultado: 9-8. Blaaargh!
A expulsão de Warburton, verdadeiro momento do jogo, é muitíssimo polémica e incendiou os media britânicos durante o fim-de-semana. O mister Gatland clamou aos quatro ventos que os dragões foram "roubados do seu destino", que seria vencer o mais importante acontecimento desportivo da história do país (uma alegação de peso, tendo em conta o esforço dos archeiros galeses na Guerra dos Cem Anos, uma espécie de Cinco Nações medieval). Em Cardiff, até o Primeiro-Ministro Carwin Jones acusou o árbitro Allan Rolland (irlandês, para cúmulo do azar) de ter "arruinado" um tal momento histórico. E Mike Phillips, menos eloquente ou talvez não, limitou-se a rosnar que os franceses ganharam mal e vão ser feitos em pedacinhos por quem quer que vá à final com eles.
Têm razão? Têm. Como se pode ver acima, a placagem de Warburton é uma speer tackle, uma placagem em que o placador levanta do chão o jogador placado e o projecta sem controlar a queda. Jogo perigoso, sem dúvida, e punido pelas leis do jogo com a expulsão - se intencional. Ora, como também se pode ver acima, o galês larga Clerc no ar porque quer jogar a bola. Não há qualquer intenção de jogo perigoso, apenas uma desproporção evidente entre o peso e a força dos dois. Por amarga ironia, Gales e o seu capitão foram agora vítimas da tremenda garra que lhes deu a vitória contra a Irlanda. Torna-se muito difícil ao árbitro avaliar a intenção quando a jogada é tão rápida, mas exigia-se que aplicasse o espírito e não a letra da lei, ou seja, que optasse pela pena mínima atendendo às circunstâncias. Warburton pode orgulhar-se de um cadastro invulgarmente limpo para um terceira-linha. Clerc não se lesionou.
Qualquer expulsão ao fim de um quarto de hora teria consequências no resultado. E era uma meia-final. Um cartão amarelo e a correspondente expulsão de dez minutos seria a melhor decisão. Rolland não entendeu assim, oferecendo à França uma imerecida presença em Eden Park no próximo Domingo e aos All Blacks um dos mais fracos adversários a sair da fase de grupos. Porque ninguém duvida que os maoris vão voltar a fazer picadinho de coq au vin, como há um mês e como em 87. Provavelmente, o cartão vermelho do Sr. Rolland decidiu o Mundial.
por Pedro Picoito,
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