"De vez em quando, volto a uma frase atribuída a Gramsci e que é daquelas em que melhor me reconheço: «Pessimismo da razão, optimismo da vontade». Uma frase que Albert Camus, morto prematuramente num acidente de automóvel a 4 de Janeiro de 1960, aos 47 anos, também poderia ter subscrito. Meio século depois, Camus volta a estar na moda – conceito que ele decerto abominaria – e pode mesmo dizer-se que nunca o esteve como agora, quando nos confrontamos retrospectivamente com a justeza simultaneamente trágica e luminosa do seu pensamento, do seu «humanismo austero» como Jean-Paul Sartre o descreveria num elogio fúnebre que, no entanto, não foi suficiente para apagar as divergências profundas entre ambos.
"Faço parte de uma geração que começou por identificar-se com Sartre e depois adoptou as razões de Camus. Sartre era um burguês com má-consciência de o ser, enquanto Camus, nascido na Argélia no seio de uma família miserável, com uma mãe iletrada, fez sempre questão de manter-se fiel à humildade das suas origens. Como recorda o filósofo polaco Zygmunt Bauman, Camus dizia: «Há a beleza e há os humilhados. Sejam quais forem as dificuldades da acção, não quereria nunca ser infiel nem a uma nem aos outros». Ou: «A miséria impediu-me de acreditar que tudo está bem debaixo do sol e na história; o sol ensinou-me que a história não é tudo».
"Para quem, como um mediterrânico – ou um português do Sul – vive sob o duplo império do sol e da pobreza, esta ambiguidade camusiana diz tudo. Mas Camus confessava-se também, como lembra Bauman, «pessimista quanto ao destino humano, optimista quanto ao homem», porque «o homem é a única criatura que recusa ser o que ela é».
"Estão aí as raízes da principal obra filosófica de Camus, O Homem Revoltado, esse livro tão incómodo, tão rebelde e tão mal aceite pela esquerda intelectual que, na época, vivia encadeada por Sartre. E onde o autor de O Estrangeiro – esse romance iluminado por um sol negro com que a minha geração descobriu Camus – se atreveu a rasgar a conspiração do silêncio em torno da existência do totalitarismo soviético e do gulag.
"Já outros, como Koestler ou Gide, se tinham antecipado na denúncia das perversões do ‘socialismo real’, mas a ousadia de Camus parecia extemporânea e mais provocadora nesse início dos anos 1950, quando a Guerra Fria impunha um estrito maniqueísmo na escolha dos campos: ou se era pelo Ocidente ‘capitalista e belicista’ ou pela ‘causa da paz’ representada pela URSS. Só tardiamente Sartre se aperceberia de como tinha batalhado do lado errado, escolhendo um mal contra outro mal.
"Camus estava então sozinho, como evoca hoje a sua filha, Catherine, num emocionante depoimento recolhido pelo Nouvel Observateur. Catherine, na altura uma menina com cinco anos, encontra o pai, de cabeça baixa, sentado num sofá. «Digo-lhe: ‘Estás triste, papá?’. Ele levanta a cabeça, olha-me a direito nos olhos e responde-me: ‘Não, estou só’. Nunca mais esqueci. Aquilo revoltava-me de uma tal maneira! Não sabia como dizer-lhe que comigo ele não podia estar só».
"A solidão é, frequentemente, o preço da liberdade e independência de espírito, valores que Camus cultivou com uma perseverança singular. E pode ser também o preço da razão, quando nas nossas sociedades ditas afluentes se multiplicam as manifestações de complacência, cegueira, desvario e renúncia que corrompem as reservas essenciais que justificavam o optimismo de Camus no ser humano. Ele confessava-se «pessimista quanto ao destino humano», mas «optimista quanto ao homem» porque este continha um potencial de insubordinação e revolta contra o absurdo da sua condição (a ponto de Camus querer ver em Sísifo, condenado a repetir para sempre o mesmo esforço inglório de transportar a pedra do destino até ao alto da montanha, o protagonista mítico de um gesto feliz).
"É um pouco por tudo isto que, nas vésperas do aniversário da morte de Camus, me ocorreu a tal frase sobre o pessimismo da razão e o optimismo da vontade – que, embora atribuída a Gramsci, julgo poder ter sido adoptada pelo autor de O Mito de Sísifo. No momento em que Camus é descoberto e celebrado por gerações nascidas depois do seu desaparecimento, não deixa de ser uma ironia que um escritor tão incessantemente relacionado com o absurdo existencial acabe por ser associado a uma esperança metafísica na regeneração humana, na capacidade do homem em ultrapassar os estigmas do seu destino.
"Não sei o que pensaria Camus do mundo de hoje, ele que viveu tempos dilacerantes que se arrastaram ao longo de décadas: o nazismo e o estalinismo, a bomba de Hiroxima sobre a qual escreveu um texto absolutamente decisivo, a Guerra Fria, a guerra e a independência da Argélia que tanto o marcaram na carne e na alma (ele que se bateu pelo sonho, finalmente fracassado, de reconciliar as comunidades de origem africana e europeia).
"Mas atrevo-me a imaginar que Camus – que foi, também, um jornalista brilhante e intensamente interventivo – se sentiria profundamente defraudado por algumas expectativas que, mesmo em épocas mais negras, ele não se cansou de alimentar sobre a urgência de uma nova ordem internacional e, embora de forma menos explícita, sobre o papel da Europa nessa ordem.
(...)
"Que escreveria Camus acerca disso e, já agora, que teria escrito também, se fosse português, num artigo recolhido na selecção das suas Actualidades, sobre o nosso sistema de justiça, ele que era um justo mas que começou por ser célebre como um escritor do absurdo?"
Vicente Jorge Silva,
in Sol, 27 Novembro 2009
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