terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Para aqueles que apreciam a opção pelo mar

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"SOCIEDADE ABERTA Um desses autores foi Karl Popper. No seu exílio na Nova Zelândia, durante a Segunda Guerra Mundial, Popper escreveu essa grande obra intitulada "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos". Apresentou-a como o seu "esforço de guerra" em defesa das democracias ocidentais, contra os dois totalitarismos rivais, o nacional-socialismo e o comunismo. O livro foi publicado em 1945, ainda antes do final da Segunda Guerra, e por muitos considerado uma espécie de Bíblia das democracias ocidentais. Foi traduzido em muitas das línguas do planeta, continuando ainda hoje a versão inglesa a esgotar-se e a ser reeditada.

"Popper estabelece uma distinção fundamental entre sociedade aberta e sociedade fechada. Numa sociedade aberta, por contraste com uma sociedade fechada, existe liberdade de crítica e liberdade de examinar, rever ou conservar, normas legais e convenções sociais. Os indivíduos aceitam o fardo da liberdade e consequente responsabilidade de escolher.

"Esta abertura dá então lugar a um ambiente descentralizado de experimentação, de ensaio e erro, o qual, por sua vez, é propício à investigação filosófica e científica, à inovação tecnológica, ao comércio e ao livre empreendimento.

"ESPARTA CONTRA ATENAS Karl Popper considera que a civilização ocidental é aquela que emerge da transição das velhas sociedades fechadas tribais para as novas sociedades abertas. Essa transição começou mais vincadamente na Grécia do século v a. C., o século da grande geração de Péricles, Tucídides, Heródoto e Sócrates. Para Popper, a Guerra do Peloponeso, entre Atenas e Esparta, exprimiu essencialmente o conflito entre uma sociedade aberta emergente, a democrática Atenas, e uma sociedade fechada, a Esparta colectivista. Considerou que a Segunda Guerra Mundial foi uma reedição desse conflito, tendo o lugar de Atenas sido ocupado pelas democracias ocidentais e o de Esparta pelo nacional-socialismo alemão e o comunismo soviético - cuja aliança de facto desencadeou a guerra e a dupla invasão da Polónia, em Setembro de 1939.

"Qual foi, para Karl Popper, a origem da emergência da sociedade aberta em Atenas? A resposta é verdadeiramente extraordinária, para aqueles que apreciam a opção pelo mar.

"ATENAS MARÍTIMA "Talvez a mais poderosa causa do colapso da sociedade fechada tenha sido o desenvolvimento das comunicações marítimas e do comércio. O contacto estreito com outras tribos desafia o sentimento de necessidade com que as instituições tribais são percepcionadas, e a troca, a iniciativa comercial e a independência podem afirmar-se, mesmo numa sociedade em que o tribalismo ainda prevalece.

"Estes dois aspectos, a navegação e o comércio, tornaram-se as principais características do imperialismo ateniense, tal como ele se desenvolveu no século v a. C. [...] Tornou-se claro [para os inimigos da democracia em Atenas] que o comércio de Atenas, o seu comercialismo monetário, a sua política naval e as suas tendências democráticas eram parte de um único movimento, e que era impossível derrotar a democracia sem ir às raízes do mal [do ponto de vista dos inimigos da democracia] e destruir quer a política naval quer o império.

"Mas a política naval de Atenas estava baseada nos seus portos, especialmente o Pireu, o centro do comércio e o bastião do partido democrático, e, estrategicamente, nas muralhas que fortificavam Atenas e, mais tarde, nas longas muralhas que a ligavam aos portos do Pireu e de Faleros. Por esta razão, verificamos que, durante mais de um século, o império, a frota, o porto e as muralhas foram odiados pelos partidos oligárquicos de Atenas e considerados símbolos da democracia e fontes da sua força, que aqueles partidos queriam um dia destruir." [vol. i, pp. 177-8].

"ESPARTA CONTINENTAL Eis, numa breve passagem de entre muitas outras, a extraordinária proposta de Karl Popper: a sociedade aberta do Ocidente, apoiada no duplo pilar grego-romano e judaico-cristão, emerge das comunicações marítimas e do comércio de Atenas. A sua principal opositora, Esparta, é uma potência continental, fechada, colectivista, autoritária, centralizada, inimiga do comércio, da família e da propriedade privada, que vê no mar e na opção pelo mar a principal ameaça ao seu fechamento. Para Popper, esta oposição entre potências marítimas e potências continentais manter-se-ia até aos nossos dias. Em 1938-39, as principais potências continentais, a Alemanha nazi e a Rússia soviética, aliar-se-iam para esmagar as democracias ocidentais. E estas foram defendidas pela aliança entre as duas grandes potências marítimas: a Inglaterra e os Estados Unidos da América.

"Karl Popper não era, no entanto, um historiador, mas sim um filósofo. Deixou-nos páginas veementes em defesa das potências marítimas, sobretudo Atenas, Inglaterra e os Estados Unidos da América, mas nunca desenvolveu esse argumento com base em dados históricos detalhados.

"O historiador que talvez mais tenha contribuído para evidenciar a relação entre a opção pelo mar e a democracia é Peter Padfield, autor de uma monumental trilogia sobre as potências marítimas.

"A OPÇÃO PELO MAR Em "Maritime Supremacy and the Opening of the Western Mind" (1999), cujo título faz uma clara referência à ideia de Popper sobre a abertura intelectual, Padfield descreve a emergência da Holanda como potência marítima e comercial no século xvii, bem como a sua gradual substituição pela Inglaterra no século xviii. O livro seguinte, intitulado "Maritime Power and the Struggle for Freedom" (2003), descreve o conflito entre a Inglaterra e as potências terrestres espanhola e francesa, com a ascendência britânica à supremacia naval no século xix.

"O terceiro volume, "Maritime Dominion and the Triumph of the Free World" (2008), prolonga a narrativa até ao século xx, com os Estados Unidos a sucederem a Inglaterra como potência marítima dominante, e a Alemanha e a Rússia a substituírem a Espanha e a França como potências continentais.

"Ao longo desta imponente trilogia, o argumento de Padfield mantém-se. "A supremacia marítima é a chave que permite responder à maior parte das grandes questões da história moderna, certamente permite decifrar o enigma de como e porquê nós - as democracias ocidentais - somos como somos." Isto deve-se, explica o autor, a que nos tempos modernos as potências marítimas sempre prevaleceram sobre os seus inimigos continentais, fazendo assim com que os sistemas de valores marítimos tenham prevalecido sobre os continentais.

"VALORES MARÍTIMOS Mas quais são os sistemas de valores marítimos? Retomando o argumento de Karl Popper, Peter Padfield sustenta que são valores de liberdade, comércio livre, livre empreendimento, estado de direito e governo representativo ou democrático, que responde a um parlamento eleito livremente e que, por isso, não usa e abusa dos impostos nem interfere de forma vanguardista nos modos de vida pacíficos das pessoas.

"A limitação do poder executivo parece ser a característica definidora do poder dos mercadores no governo. [...] O receio de que o governante pudesse ser arrastado para aventuras desnecessárias cujos custos arruinariam o comércio e a probidade financeira levou os interesses dos comerciantes a limitarem o poder dos governantes. [...] Do que os mercadores das potências marítimas ocidentais usufruíam era da liberdade de investir onde quer que vissem uma oportunidade [...] protegidos pela lei contra constrangimentos ou violência arbitrária, viessem estes de reis, ministros, barões ou populares." [vol. ii, vol. i, p. 1 e p. 21].

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ENSAIO
A origem marítima da civilização ocidental
por João Carlos Espada, publicado no "i" a 28 de Novembro de 2009

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