quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Um português na China

(Um texto de um estudante jesuíta)

"A última vez que escrevi para o Essejota estava em Macau. Macau sempre foi porta de entrada na China e comigo não foi diferente. No passado 31 de Julho, dia muito especial para todos os que se sentem inspirados por Inácio de Loyola, entrei finalmente no coração da China que é Pequim.

"Agora, passados dois meses, quero partilhar aqui alguma coisa do vivido, mas têm sido tempos tão ricos, que se torna difícil escolher. Podia falar desta cidade incrível, com os seus 17 milhões de pessoas, 100000 restaurantes, cinco anéis de circulação (auto estradas de 12 vias) em torno de uma “cidade proibida”, 15 linhas de metro, muita poluição, e muita vida que vai acontecendo de forma simultaneamente organizada e espontânea. Podia também falar do centro onde estou a estudar chinês, um pouco de filosofia e artes marciais chinesas. Podia falar da incrível viagem que fiz pela Rota da Seda, em que, de comboio, avião, autocarro e até camelo, acompanhámos a linha da grande muralha por mais de mais de 6000 km, desde Pequim até ao interior ocidental deste Antigo Império. Podia falar da minha lenta aprendizagem, das dificuldades linguísticas e culturais, ou dos maravilhosos (e baratos) sabores da comida chinesa.

"Mas desta vez vou falar de pessoas porque são as pessoas que mais me “dizem” a mim. Para além das aulas normais, cada aluno estrangeiro tem um tutor de chinês. Tive muita sorte porque a minha tutora está a tirar o curso de “chinês para estrangeiros”. É uma jovem normal, filha única, claro, que não sabe ainda o quer fazer no futuro. Nos últimos 3 meses, juntamente com mais 3000 alunos aqui da universidade, preparou-se para a grande celebração do seu país, que fez 60 anos no passado 1 de Outubro. Todos os dias, entre as 5 e as 8 da manhã (!), 3000 jovens treinavam sobre o olhar atento dos organizadores, em busca de uma sincronização e ordem que todos desejam perfeita. A cerimónia decorreu sem percalços e ela, orgulhosa, fundiu-se com centenas de milhares no grandioso desfile.

"Mais tarde perguntava-me timidamente: “Achas que é um desperdício de tempo tanta gente ensaiar tanto tempo para caminhar 7 minutos diante do presidente?” O que me veio à cabeça foi: “Se pedissem isso no meu país havia uma revolução de certeza!” Mas, não sem sinceridade, respondi: “Acho que revela algo muito bonito acerca dos chineses: são capazes de enorme entrega por uma causa maior que eles. Ainda assim confesso-te que não me é fácil perceber-vos: tantas pessoas tão diferentes todas vestidas de igual e a fazer o exactamente o mesmo…” E assim nos vamos conhecendo, ela com muitos porquês sobre esta minha vocação e crença, e eu sempre a perguntar qual é o tom deste ou daquele carácter da sua língua (obviamente estou num patamar existencial muito básico!).

"A segunda pessoa que vos queria apresentar é a funcionária da biblioteca. É difícil adivinhar a idade dos chineses, mas pela entrevista que lhe fiz (trabalho de casa para chinês), e pelo aspecto posso arriscar que é senhora de uns 60 anos. Fala um chinês lindo, com pronúncia de Pequim e contou-me com imensa simplicidade que aos 16 anos foi mandada para o campo cultivar a terra. Passou 5 anos no campo, sem ver ou telefonar à família, até que foi enviada de novo para Pequim, onde trabalhou vários anos numa fábrica de químicos. O salário era mínimo, mas todos tinham comida de graça.

"Depois das políticas de abertura, não sei bem como, foi contratada para a nossa biblioteca, onde, sem falar uma palavra de inglês, se torna amiga de todos quantos cá passamos. É uma pessoa agradecida, pacificada e muito amável. Nunca lhe senti desprezo por um “passado que não pôde escolher”, antes apreciei a sua gratidão por ver o seu país chegar onde chegou. Confessou que o que mais gosta agora é de conversar connosco, porque lhe ensinamos muita coisa e a ajudamos a abrir horizontes (em chinês diz-se expandir o olhar). Diz que os padres (o centro tem um director jesuíta) sempre a trataram muito bem, especialmente porque falam com ela “como se fosse igual” a eles.

"Há mais de um ano no Oriente ainda ando à procura de um modo de estar. Parece-me que passa por saber apreciar o diferente procurando aí algo de valioso e santo, sabendo ao mesmo tempo assumir-me e apresentar-me com aquilo que trago. O que é que quero dizer com esta frasezinha bonita? Quero dizer que os chineses devem ser para mim como uma pergunta, tal como eu o devo ser para eles. “O que é que os faz ser capazes de trabalhar e lutar tanto por algo? O que te faz vir de tão longe? De onde lhe vem esta paz, mesmo tendo sofrido tanto no passado? Por que é que este rapazinho quer estudar a nossa língua e por que é que decidiu não casar?” E por aí fora…"

Francisco

2 comentários:

Anónimo disse...

Mantens um ritmo muito invejável de colaboração de "posts" para a Rua do Souto! AS tuas escolhas são sempre muito boas e esses ignorantes do PP de Braga deviam ler. Os teus textos fazem bem à alma! Abraço fraterno, Miguel Brito
PS:Tarda em sair uma nomeação minha!

Nuno disse...

Caro Miguel, como estás?
Obrigado pelas tuas palavras...

Confesso que temo, aqui ou ali, exagerar nos ditos posts e na sua extensão. Eu acho-os válidos e, muitas vezes, importantes (muitos não são bem meus...).
Quanto ao PP, custa-me que chames o que chamas aos meus "compagnons de route"...